90 anos de Maria Delmira, uma heroína de exemplar de resistência

É comum encontrarmos mensagens com a sugestão para que as pessoas acreditem e realizem seus sonhos. Mensagens que abarcam, às vezes, livros inteiros, carregados de imenso oportunismo, pois se esquecem de tratar do principal: só é possível sonhar com aquilo que conhecemos e aprendemos, e só é possível realizar aquilo que se tem como objetivo com ferramentas que chegaram às nossas mãos. Essas propostas, geralmente, constroem mais Inferno do que imagem do Paraíso, pois não ensinam a conseguir ferramentas e muito menos trazem ferramentas à vida das pessoas. Quando se fala tanto em Inferno (o Inferno nasce do isolamento, da dominação, do atrofiamento do acesso ao conhecimento) só é possível gerar pesadelos. As pessoas precisam do conhecimento, que ensina a sonhar e a conseguir as ferramentas de libertação e da realização dos sonhos.

Nesta terça-feira, 20.04.2021, a minha mãe Maria Delmira de Sousa completa noventa anos. Está firme e forte, no entanto, magoada com seu passado, pois tomou consciência do subjugamento a que foi submetida ao longo da vida. Quando jovem, foi negada a ela conhecer outras realidades e, sobretudo, não ofereceram a ela nenhuma ferramenta para que pudesse descobrir realidades onde pudesse construir sua vida, muito menos ter acesso a formas corretas de construir e sonhos e muitos para concretizá-los. Foi fechada numa realidade limitadora e de aprisionamento. Mas seu caso não era um caso isolado, só de minha mãe, mas de todas as meninas que nasciam no mundo medieval em que o Centro Oeste brasileiro vivia nos meados do Século XX, quando já estava em andamento a revolução industrial e a Europa lutava pela emancipação da mulher.

Ela estava com 23 anos quando nasci, e meu irmão mais velho estava com quatro anos, e nada compreendia, pois sua idade mental nunca passará de dois anos, ou menos. Maria Delmira de Sousa praticamente foi posta para fora de casa, pois naqueles idos de 1947, as famílias, além de não alfabetizarem as filhas, tornavam-nas refém do trabalho doméstico da casa dos pais até chegarem à mínima idade para serem dadas em casamento. Depois se tornariam refém da própria casa, ainda quase crianças; por isso, com as condições adversas de trabalho, sem atendimento médico, com os partos nas condições mais abjetas, era natural o nascimento de filhos deficientes, que transformavam as filhas mulheres ainda mais reféns ao longo da vida, como são os casos de minha mãe e de minha tia Criola, outra que padeceu o que o pão diabo amassou.

Meu pai também ficou órfão muito cedo, sendo absorvido pela família do irmão mais velho, sendo tratado da mesma forma que minha mãe. Refém do trabalho, sem direito à alfabetização e, quiçá, sem direito à herança dos pais, pois o que herdou no momento em que se casou, não cobria o valor do trabalho que prestou ao irmão mais velho por mais de 10 anos. E nestes mais de dez anos, morou num ambiente de absurda degradação, num barracão, pois, nesse período o irmão mais velho não tinha a sede da fazenda que viria a construir. O barracão servia de cozinha, quarto, sala, uma chafurda de meninos e de meninas e de fumaça da fornalha.

Quando se casou com minha mãe, João Miguel construiu uma pequena casa de adobes na sede da fazenda de meu avô Sansão Fernandes de Sousa e para lá levou sua força de trabalho e as raras vaquinhas de sua herança. E podemos dizer que levou Maria Delmira, pois certamente, não foi decisão dela, de forma consciente, ir para aquela casa de pé direito onde mal dava para um homem ficar de pé. Ele e Maria Delmira morariam por uns 16 anos naquela casa de menos de 80 metros quadrados, com poucos utensílios, e nesse período nenhuma riqueza construiu, a não ser aumentar o rebanho em umas dez cabeças. A pequena casa, ou choça, tinha acesso a todas as peçonhas, inclusive ao famigerado barbeiro da Doença de Chagas, praga que, até por volta de 1980, atingia quase 80 por cento da população da zona rural de Silvânia. Meu pai foi uma de suas vítimas, deixando mais tarde mãe e filhos ainda mais desamparados. Mas no desamparo eles já viviam, depois que foram para cidade, pois o meu pai, além de debilitado pela doença, não conseguia produzir, pois as terras para trabalhar de meia não mais existiam e aquelas que existiam eram de quase nula produtividade. Quando estava cursando a faculdade, estive numa das últimas roças que ele manteve. É de penúria a minha lembrança. Ele de cócoras, cigarro de palha entre os dedos, respiração ofegante, desanimado no meio da plantação chocha de milho. Olhar distante, ciente da incerta da colheita e do próprio destino.

A família de minha mãe chegou no município de Silvânia no final do século XIX, oriundos de Minas Gerais, onde não existia mais terras, já que o método de acesso à terra no Brasil era o de concessão aos apadrinhados do Poder, do grande latifúndio, que afastou até a imigração de europeus mais endinheirados, pois no Brasil não era possível comprar terras. É um dos fatores do grande atraso do desenvolvimento econômico brasileiro, que veio dar no atraso de nossa indústria.

A família Souza, portanto, comprou terras na região do Rio dos Bois e Rio Calvo, pois o país vivia um período de necessidade de ocupação territorial interiorizada. No entanto, naquela época, ainda não era permitida a exploração da terra para grande comércio, sobretudo de pecuária. Os imigrantes do Centro Oeste se limitavam à produção de bens para a sobrevivência. A população rural vivia do escambo de produtos. As pequenas fazendas tinham de produzir praticamente tudo que precisava para consumir. Tinha de produzir o mobiliário, a roupa, a alimentação. Meu avô, diante dessa exigência, era um exímio artesão. Produzia artefatos de couro, madeira e taboca. Produzia todos tipos de corda, armadilhas para pesca, tamboretes, jacás, esteiras para carro, aguardente, utensílios de cozinha, tais como almofariz e colheres de pau. Um de meus passatempos, quando criança, e certamente terá sido de minha mãe, era acompanhá-lo, ajudando, observando, enquanto ele trabalhava. Era praticamente o único alfabetizado da região. Permitiria a alfabetização dos filhos homens, mas não das mulheres.

Nos anos que viveu na zona rural, minha mãe foi refém do trabalho, dos filhos, e da escuridão, e também da solidão. O marido ia trabalhar e raramente tinha alguém para dividir a faina e para ter companhia. Até os meus doze anos, ela foi minha companhia. Eu tinha de transformar em brincadeira o trabalho que fazia para ajudá-la. Ela tinha de produzir tecidos desde a origem. Meu pai colhia o algodão, ela e eu descaroçávamos, ela cardava, fazia um mutirão para fiar e depois tecia no tear de minha avó. E depois tinha de costurar. Também na máquina da vovó Candinha. Essa era uma das atividades que a tornava refém, além de fazer queijo, cozinhar, alimentar filhos e animais, destrinchar e fritar porcos, e a vigília do filho deficiente para que ele não desaparecesse pelas estradas.

Quando se viu viúva, na cidade, sobretudo com o apoio dos dois filhos do meio, dos seis que ela gerou, teve de enfrentar total penúria econômica. Eu me encontrava em Brasília, tentando construir arcabouços para construção de uma realidade menos desfavorável para minha vida, quase não contribuindo para minorar as suas dificuldades, pois a minha vida também era de penúria. Inclusive de penúria de conhecimento da realidade familiar, pois, na época, com a experiência desse meio medieval, era difícil saber construir alternativas para encaminhamento econômico, seja de filhos para os pais ou de pais para os filhos. Ela teve de raspar osso, literalmente, para sobreviver com seus filhos.

Dentro dessa realidade, três filhos também se sacrificaram, ficando sem acesso ao ensino superior, tendo, no entanto, construído com esforço e dura ralação o patrimônio familiar, com a honradez herdada do pilar da matriarca. Hoje ela chora e diz: “Não podiam ter feito isso comigo”.

Guardo momentos de grande intimidade com a minha mãe. De poucas viagens que fizemos juntos. Passamos juntos uma semana no Rio de Janeiro, talvez a ocasião que pudemos desfrutar de mais intimidade, depois do período da infância. Na juventude, quando eu comecei a escrever e a ler poesia, foram muitos os momentos em que li para ela, à luz de lamparina. A televisão mal tinha chegado a Silvânia e só umas três casas tinha acesso a esse novo meio de comunicação. E nem tínhamos, naquela época, condições de comprarmos uma televisão.

Relembro bem o seu domínio perspicaz da compreensão das palavras. Não aprofundava mais por falta de conhecimento. Quando eu era muito pequeno, foram muitas vezes que eu presenciei as suas repreensões ao meu pai pelo uso da palavra “desgraça” e “desgraçado” contra os animais. Para desabafar a sua ira, talvez não contra o animal em sai, mas pela própria rudeza em que se inseria no seu isolamento, meu pai proferia desabafos contra a vida mesquinha em que estava inserido com esse xingatório. Só na vida adulta fui conferir a preocupação de minha mãe com o uso  dessa palavra. Não era uma proteção aos animais ou tentativa de apaziguar a ira do companheiro. Vinha da profunda religiosidade, que era a pouca coisa injetada nas mulheres. “Graça” é a presença divina, portanto, “desgraça” é a ausência da presença de Deus.

Tenho certeza que se tivesse sido oferecido a ela o conhecimento, na juventude, ela teria construído outra vida para si e para os filhos. Teria esboçado sonhos. A realização de seus sonhos teria sido factível. Hoje ela sonha e não tem mais forças para alcançá-los. Aproveito para agradecer à escritora Leonice Jacob o perfil que escreveu sobre minha mãe em seu recente livro. Soube captar, com raro sentimento, a heroína em que ela se transformou. Agradeço ao irmão José Aparecido de Sousa, nosso caçula, e sua mulher, a nossa Dorinha, pelo carinho que cuidam de nossa mãe e do irmão Sansão. Agradeço aos irmãos Miguel e Toim por terem se sacrificado naquele momento de total dificuldade para todos nós, mas que tornaram possível atravessarmos o pior momento daquela tormenta. À Francisca, que nos auxilia nos entraves médicos, e hoje já considerada uma filha dessa matriarca. À mana Rosa Delmira, que esteve no meio da tormenta e que nos auxilia e provoca diariamente para que a família continue unida em torno dessa matriarca heroína e cheia de fortaleza.

Parabéns, mãe. Não conseguimos reconstruir o passado, mas podemos trabalhar para que o futuro de nossos descendentes seja esboçado com melhor consciência, que se alcança com conhecimento.
* Texto do Escritor e Poeta Salomão de Sousa

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *